– CAPÍTULO DOIS: –

O Menino Marcado

Takeshi estava deitado de costas, respirando com esforço como se tivesse acabado de encerrar uma maratona. Acordara, naquele instante, de um sonho vívido, apertando o rosto com as mãos. Sua marca de nascença no lado superior esquerdo da testa, avermelhada e crescendo irregularmente, ardia levemente sob seus dedos como se alguém tivesse comprimido sua pele com um arame em brasa.

Ele se levantou pouco a pouco até que estivesse sentado, com uma das mãos ainda em sua marca, e a outra afastando os lençóis que o cobriam. O quarto estava sendo iluminado por uma luz forte e enevoada vinda da lua do lado de fora da janela.

Takeshi tornou a passar os dedos por sua marca, que continuava dolorida. Afastou completamente os lençóis que cobriam parte de suas pernas, levantou-se da cama, um colchão de algodão disposto diretamente no chão coberto por uma camada de lençóis, atravessou o quarto cuidadosamente, caminhou em direção ao guarda-roupa, abriu a porta e espiou no espelho que havia no lado interno. Um menino magro de treze anos olhou para ele, os olhos muito avermelhados e intrigados sob os cabelos rebeldes e pontiagudos ligeiramente vermelhos. Examinou sua marca de nascença em sua imagem com mais atenção. Parecia normal, mas continuava a arder.

Takeshi tentou se lembrar do que estivera sonhando antes de acordar. Havia lhe parecido tão real... haviam três pessoas que ele não conhecia... ele se concentrou, enrugando a testa, tentando se lembrar...

Veio à sua mente a imagem pouco nítida de um quarto escuro, com inúmeros corvos voando em sua direção e, em poucos instantes, desaparecendo como se tivessem ido em direção a um sumidouro... um homenzinho de apelido Kuro, e uma voz extremamente desconfortável, similar a uma cacofonia de sons, ora grave e sombria, ora fina e penetrante, ambos os sons entrelaçados e sem qualquer padrão.

Fechou seus olhos com força e tentou se lembrar que aparência tinha aquele indivíduo que tinha a voz penetrante, mas foi impossível... tudo o que Takeshi sabia era que, no momento em que a poltrona girara, vira o que estava sentado nela, sentira um espasmo de horror que o acordara... ou fora a dor em sua marca que havia feito isso?

E quem era o velho? Porque, sem dúvida havia um velho; afinal, Takeshi o vira cair no chão. Aos poucos, tudo começava a ficar confuso; o garoto levou as mãos ao rosto, tampando a visão do quarto em que estava, tentando reter a imagem do outro que sonhara, o mal iluminado, porém, era o mesmo que tentar segurar água com as mãos; os detalhes agora desapareciam com a mesma rapidez com que ele tentava retê-los de não escaparem. Um dos indivíduos no quarto e Kuro estiveram conversando sobre quem estavam planejando matar... ele...


Takeshi tirou as mãos de seu rosto, abriu os olhos e contemplou o quarto a toda volta como se esperasse encontrar algo diferente ali. Como era de se esperar, haviam muitas outras crianças de sua idade deitadas em seus colchões de algodão dispostos lado a lado, nenhuma decoração no quarto, apenas as paredes e o teto de madeira, e um guarda-roupa ao seu lado que era usado por todas as crianças para guardar seus colchões quando tivessem acordado. No chão, ao lado de sua cama, havia um livro aberto; ele o estivera lendo antes de adormecer.

Foi até o livro, cuidadosamente para que não tropeçasse em nenhum de seus colegas de quarto, apanhou-o e fechou o livro. Nem mesmo livros conseguiriam distraí-lo naquele momento. Em seguida, dirigiu-se à janela e olhou atentamente para o lado de fora.

Podia ver uma parte do enorme orfanato o qual morava pela janela, bem como uma parte do campo gramado que o orfanato se situava. Era a única construção em centenas de metros, rodeada completamente por um círculo de imponentes árvores de glicínias, uma folha de cor roxa, que podia ser vislumbrada a milhares de metros de distância. Pela janela, a impressão causada pelas árvores era que brilhavam fortemente no luar. Até onde Takeshi pôde ver, não havia um único ser vivo à vista, nem mesmo um gato.

Contudo, Takeshi voltou inquieto para a cama e se sentou, passando mais uma vez um de seus dedos pela marca. Não era a dor que o incomoda. Não, a coisa que estava incomodando Takeshi era o fato de que sua marca de nascença nunca havia doído antes.

Takeshi parou para escutar com atenção o silêncio à sua volta. Estaria esperando ouvir o rangido dos assoalhos de madeira que compunham o chão do orfanato? Então teve um leve sobressalto, um de seus companheiros de quarto acabara de soltar um ronco.

Deu em si mesmo uma sacudidela imaginária; estava sendo burro, não havia ninguém lá dentro, exceto os funcionários do orfanato e as outras crianças, e era evidente que eles ainda dormiam, embalados por sonhos tranquilos e indolores.


Takeshi tinha um ano de idade na noite em que fora deixado às portas do orfanato, dentro de um cesto de madeira e embrulhado por alguns lençóis brancos e finos. Na manhã seguinte, uma mulher de pele pálida e levemente enrugada, cabelos pretos presos em um coque e adornado com alguns enfeites, encontrou-o na porta do orfanato. Em seguida, levou-o para dentro e abrigou-o como uma de suas crianças.

Houve uma balbúrdia quando a Sra. Yoshimura, diretora do orfanato, a mesma que encontrara Takeshi momentos antes, entrou na sala dos funcionários com mais uma criança em mãos.

— Mas senhora... mais uma criança aqui seria demais... mal temos o suficiente para cuidar das que já estão sob nossa responsabilidade, imagine mais uma... — Explicava uma das funcionárias, arrumando uma parte de seu avental, era a cozinheira do orfanato.

— Akiko tem razão... — Complementava outra funcionária. — Não vai ser nada fácil lidar com mais uma criança, além disso, não estamos mais recebendo tanto quanto antes, isso torna as coisas bem mais difíceis para todas nós, até mesmo para a senhora.

Houve um murmúrio de concordância múltipla entre as outras funcionárias. De fato, o orfanato Arco-Íris não recebia mais como recebia antes, uma vez que contavam com um grande auxílio dos governantes, agora recebiam uma parcela muito pequena para que pudessem manter muitas crianças sob sua responsabilidade. Naquele momento, as funcionárias que estavam presentes na sala começaram a se reunir em torno de uma mesa de centro, a qual recebera a cesta de madeira em que Takeshi estava embrulhado. Houve, em seguida, a restauração da balbúrdia quando avistaram o primeiro sinal visível de Takeshi, sua marca.

— Senhora... — Akiko dizia, mas fora interrompida pela Sra. Minami, que tornou a falar.

— Ora, meninas, não se preocupem, nós vamos dar um jeito... não precisam se preocupar, de maneira nenhuma... — Ela dizia, com voz doce e calma enquanto se mantinha de pé a frente do grupo de mulheres que trabalhavam no orfanato.

— Senhora, já estamos de mãos cheias com a quantidade de crianças que abrigamos aqui, há poucos dias mal conseguimos fechar a semana alimentando todas elas... — Akiko baixou seu olhar e a voz. — Não temos mais a ajuda que tínhamos antes, e era isso que mantinha o orfanato de pé.

Algumas funcionárias comentavam e apontavam discretamente para a marca de nascença de Takeshi; Akiko, no entanto, decidiu manter-se em silêncio sobre tal questão, porém, assim como suas companheiras, acreditava que esse seria um fator colaborativo o suficiente para que a criança naturalmente fosse deixada de lado pelas outras.

— De fato, Akiko... — Após um pequeno silêncio, a Sra. Yoshimura retornou a falar, voltando a atenção de todas as mulheres que estavam na sala dos funcionários para ela. — A ajuda que recebíamos de outras instituições, por mais que pudéssemos contar nos dedos, era de grande importância. Sei que estão apreensivas quanto ao futuro do que será decidido do orfanato, mas não se preocupem, estava saindo há pouco para uma reunião com um possível magnata interessado em nos ajudar mas acabei encontrando esse pequenino. — Continuava a dizer calmamente e gesticulando o mínimo possível. — Por isso, meninas, peço que me ajudem a abrigar mais um menino em nossas asas, afinal, uma transferência nem sempre é bem sucedida, principalmente se formos levar em consideração o momento que estamos passando. — Ela suspirou enquanto as outras prestavam atenção atentamente a cada palavra que a Sra. Yoshimura dizia. Então, após poucos instantes, como se uma clique a tivesse lembrado, ela continuou: — Bem, é melhor eu ir, não quero me atrasar para a reunião. Quando eu voltar, poderemos decidir com calma a respeito dessa questão. Tenham um ótimo dia, meninas. — Disse, acenando para as funcionárias que retribuíram com outro aceno carinhoso. Em seguida, retirou-se da sala.


Anos mais tarde, baseando-se nas pouquíssimas conversas que teve com a Sra. Yoshimura, Takeshi acreditava que essa fora a história de como ele viera parar no orfanato Arco-Íris, mesmo que não respondesse muitas de suas dúvidas, como quem eram seus pais, por que o deixaram ali e, a maior pergunta que circundava sua mente, se um dia eles retornariam para buscá-lo.

Os pensamentos que lhe cercavam pareciam estar enfraquecendo à medida que a luz fria e cinzenta que antecede o nascer do sol penetrava devagarinho no quarto. Finalmente, quando o sol nasceu, quando as paredes do quarto ficaram douradas e quando ele ouviu os sons de seus companheiros de quarto acordando e preparando-se para se levantarem, Takeshi decidiu que era hora de deixar seus pensamentos de lado. Então se levantou, se espreguiçou e começou a dobrar seu colchão e seus lençóis para guardá-los no guarda-roupa do quarto, assim como outros garotos que dividiam o quarto com ele faziam. Quando terminou, abriu mais uma vez o guarda-roupa e, sem olhar para a imagem refletida no espelho, pegou uma muda de roupas habituais para os meninos do orfanato e fechou a porta do guarda-roupa.


Segundos mais tarde, quando abriu a porta corrediça de seu quarto e saiu para o corredor que levava até o refeitório do orfanato, pôde ouvir o sons vindo dos outros quartos naquele mesmo corredor, indicando que as outras crianças também começavam a se preparar para acordar. A luz do sol penetrava pelas janelas abertas de papel shōji que eram responsáveis por compor boa parte da estrutura do orfanato.

Conforme caminhava lentamente pelo corredor, Takeshi podia ver, graças a luz do sol, as silhuetas de outros garotos preparando-se para saírem de seus quartos através da parcial transparência do material que era feito o papel shōji. Notou que alguns garotos até mesmo conversavam baixinho.

Mais a frente, Takeshi parou em frente uma porta, também feita de shōji, gravada por kanjis que indicavam que aquela era a sala de banho masculina e, pelo som que era produzido, meia dúzia de garotos haviam acordado antes de Takeshi e já estavam tomando banho para irem ao refeitório.

A sala de banho masculina, assim como as outras salas de banho, eram banheiros reservados para que essa parte da higiene pessoal pudesse ser feita com um pouco de privacidade, sendo um espaço razoavelmente amplo. Próximo a porta de entrada, há uma prateleira com toalhas dobradas e sabonetes feitos à mão e, compondo boa parte da sala de banho, seis biombos de madeira, três do lado direito e três do lado esquerdo, responsáveis por separar os garotos enquanto estivessem tomando banho, com cada um desses biombos sendo pouco espaçosos, um balde de madeira com água levemente aquecida e um copo de madeira para pegar a água do balde e usar para lavar o corpo.

Quatro de seis biombos já estavam ocupados quando Takeshi dirigiu-se alguns passos para apanhar uma toalha, colocando-a em seu ombro, e um sabonete, o qual colocou sobre a muda de roupas que segurava, e rumou a um biombo vazio para tomar seu banho, enquanto ouvia os barulhos produzidos pela queda de porções d'água caindo no chão e indo em direção ao ralo que havia em cada biombo. Quando abriu a porta fechada do biombo vazio, viu um balde com água levemente aquecida e um gancho improvisado em uma das paredes do biombo. Fechou a porta, deixou o sabonete no chão, colocou a muda de roupas que usaria quando terminasse sobre a parede do lado esquerdo do biombo, se despiu, apoiou seu pijama sobre a parede direita, repousou a toalha no gancho improvisado e apanhou o copo de madeira flutuava sobre a água do balde para enchê-lo. Logo pôde sentir um ligeiro alívio quando sua mão, segurando o copo, afundou no balde e se deleitou com a sensação que somente a água aquecida poderia causar. Puxou-a de volta para a superfície trazendo o copo cheio e levou-o até a cabeça, virando-o e despejando a água sobre seu corpo, também molhando seus cabelos.

Repetiu esse mesmo processo lentamente por um bom tempo, aguardando que seus devaneios e pensamentos fossem expulsos de sua mente, vez ou outra usando o sabonete para limpar-se em algumas áreas do corpo. Tempos depois, quando havia esvaziado completamente a água restante no balde, agarrou a toalha e começou a passá-la por todo o corpo, em especial o rosto, o qual pressionava a toalha com um pouco mais de força e conseguia vislumbrar, mesmo que ligeiramente, o mesmo quarto mal iluminado com que sonhara naquela noite. Secou seus cabelos passando a toalha freneticamente, deixando-os mais rebeldes que o costume e novamente repousou-a no gancho improvisado. Em seguida, apanhou cada uma das peças de roupa que pegara e vestiu-se em poucos segundos. Agora usava um quimono simples de cor cinza e calças largas.

Quando terminou de se vestir, o som de outros garotos entrando e saindo da sala de banho começava a aumentar, além dos barulhos que alguns deles faziam ao conversar com seus colegas, esperando na fila para que, quando algum dos bimbos estivessem livres, pudessem entrar e tomar banho. Fora os que já estivessem dentro dos biombos, em uma das paredes da sala de banho, haviam inúmeras fileiras de outros baldes com água aquecida para que os outros garotos também pudessem tomar banho.

Takeshi, então, abaixou-se e pegou o sabonete que havia deixado no chão de madeira reforçada ao final de seu banho e pegou o pijama que estava sobre a parede esquerda do biombo e colocou sobre seus ombros. Em seguida, virou-se para a porta, destrancou-a e abriu.

— Livre. — Disse em tom desanimado ao sair da cabine. Alguns dos garotos que estavam presentes na sala de banho, ao vê-lo, interromperam abruptamente suas conversas para olhá-lo com desdém e apontar para ele disfarçadamente aos colegas. Outros, por outro lado, mesmo quando Takeshi passou ao lado deles, não lhe deram atenção ou fizeram muito caso de sua presença. Então, colocou o sabonete na prateleira dos sabonetes usados, despejou seu pijama no cesto de roupas sujas próxima a prateleira, e saiu da sala de banho, abrindo e fechando a porta corrediça no processo.


Nesse momento, projetavam-se longos feixes de luz solar que penetravam as janelas e iluminavam fortemente os quartos e os corredores do orfanato. Takeshi suspirou e tornou a andar novamente, em direção ao refeitório, sentindo o cheiro familiar do café da manhã, mesmo que estivesse ligeiramente distante do refeitório.

"Capture-o, Kuro..." Dizia a voz. Takeshi não sabia o porquê de estar tão apreensivo a respeito do pesadelo que tivera, afinal, não era o primeiro que lhe acontecia, tampouco seria o último. Mas algo ali, algo naquele pesadelo, lhe deixava com uma estranha sensação de perigo, embora não soubesse explicá-lo. Começava, agora, a se convencer de que estava sendo bobo, por mais que fosse um sonho vívido, pensava ele, não deixa de ser um sonho. Antes que pudesse refletir um pouco mais sobre o sonho que tivera, já estava parado em frente a sala do refeitório, ouvindo o inconfundível barulho dos pratos, talheres e o som misturado das vozes que se formavam.


"Foi só um pesadelo..." O garoto pensava. Porém, naquela mesma semana, sua convicção de que havia sido somente um pesadelo comum seria completamente contrariada.

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