– CAPÍTULO UM: –

A Casa do Brasão de Glicínia

A  Casa do Brasão da Glicínia, uma importante residência para os moradores das proximidades, era rodeada de histórias e lendas do que acontecera aos residentes. A casa, por muito tempo, contava com algumas janelas pregadas, partes do teto incompletas devido ao tempo em que ficara exposta a fortes chuvas, ventanias e dias de sol. Outrora uma esbelta casa senhorial e, sem favor algum, a maior e mais imponente construção das redondezas, a Casa do Brasão da Glicínia agora estava em ruínas, úmida e desocupada.

Era unanimidade entre os moradores locais que a velha casa provocava arrepios. Cerca de um ano antes, algo estranho e terrível ocorrera ali, algo que os habitantes das redondezas adoravam discutir quando não havia mais fofocas para falarem. A história do que havia acontecido fora requentada e enfeitada em tantos pontos que ninguém sabia dizer onde a verdade estava escondida. No entanto, todas elas começavam a partir do mesmo ponto: cerca de um ano antes, ao amanhecer de uma bela manhã de inverno, uma das empregadas da casa se dirigiu a casa para mais um dia de trabalho, entrou na sala de estar da enorme casa e encontrou os residentes mortos.

A criada saiu descendo montanha abaixo, aos berros e prantos, até o povoado da região e acordou o maior número de pessoas que ainda estivessem dormindo.

— Ajuda, ajuda! Caídos na sala com os olhos abertos! Completamente gelados! Ainda com a roupa do jantar!


A polícia local foi acionada e o povoado inteiro fervilhou de espanto, curiosidade e uma excitação mal disfarçada. Suas vidas eram tão monótonas e pacatas que nem sequer se importaram com os residentes da casa, tampouco gastaram fôlego para fingir luto e tristeza devido à impopularidade da família; apareciam ocasionalmente à rua do comércio para comprarem o que lhes interessasse e retornavam a casa. A preocupação de todos era focada somente na identidade do assassino, uma vez que não havia dúvidas de que uma família inteira aparentemente saudável não poderia ter morrido, na mesma noite, de causas naturais.

O Garoto Dourado, bar local muito frequentado pelo povoado, não poupou esforços para aquecer a fervorosa chama da intriga que o assunto causava a todos que moravam nas proximidades. Na mesma noite em que o misterioso assassinato havia sido informado, os moradores em peso se reuniram no bar para beberem e comentarem sobre o acontecido, todos com suas teorias mirabolantes sobre a identidade do assassino.

— Não há dúvidas, tenho certeza de que foi por uma rivalidade com alguém do passado. É sempre assim! — Um dos homens presentes no bar comentou para os que estavam sentados nas mesas próximas, o qual todos escutavam atentamente.

— Tem certeza? Se bem me lembro, eles não tinham inimizade com ninguém, viviam praticamente isolados naquela casa. — Uma mulher, sendo servida de uma caneca de cerveja no balcão por um atendente, retrucou, se virando para o homem enquanto era servida. Ele, por sua vez, fora interrompido antes de respondê-la.

Os habitantes que estavam reunidos no bar foram recompensados por saírem de suas casas durante aquela noite quando uma mulher, usando um vestido marrom até os pés, entrou súbita e rapidamente no bar, eufórica e reunindo fôlego para falar e anunciar: Tomoji Taro havia sido preso há poucos minutos.

— Tomoji? — As pessoas no bar perguntavam em exclamação. — Nunca!

— Quem é Tomoji? — Uma mulher de voz fraca perguntou, olhando confusa para os que estavam presente.

— Era o olheiro da casa. Pelo que sei, morava numa casa malcuidada próxima de onde trabalhava. — Um homem, também sentado em uma mesa próxima, comentou. No mesmo instante, uma multidão de olhares se viraram para ele, tornando-o centro das atenções. Então continuou: — Era um guerrilheiro do nosso país que se aposentou devido a um grave ferimento em sua perna, pelo que dizem, até hoje não consegue correr ou andar em plenitude. É, eu o conheço.

Houve, então, uma correria para pagar bebidas ao homem e se sentarem perto dele, pedindo por mais detalhes sobre Tomoji, o suspeito do assassinato.

— Sempre achei ele antipático e esquisito, desde os nossos tempos de batalha juntos. — O homem dizia, depois do quarto copo, parecia aproveitar sua fama. — Depois de um tempo, quando recebeu seu ferimento, desenvolveu aversão a barulhos muito altos e sabia que não conseguiria se manter no cargo de guerrilheiro com seu ferimento, mesmo que fosse tratado, ele sabia que nunca mais teria o mesmo rendimento. Então, deu no pé e começou a trabalhar naquela casa pouco tempo depois. Mesmo naquela época em que servia, sempre tentei contato e ele sempre se afastava, nunca quis se misturar. — Ele disse com sua voz grave, aparentemente com sinais de velhice aparecendo em suas cordas vocais.

— Ah... — Uma mulher, sentada no balcão, disse, então os olhares se viraram para ela. — Coitado, ele passou por muito sofrimento enquanto esteve como um soldado, sempre gostou de manter sua vida tranquila. Não acho que isso seja motivo para...

— Quem mais tinha a chave para todas as portas e janelas da casa? — Vociferou o homem, interrompendo a moça. — Ao que a empregada disse mais cedo, não havia nenhuma porta forçada ou janela que estivesse quebrada. O Tomoji só precisou entrar enquanto eles estavam dormindo e...

— Não seja idiota, foi a própria criada que disse que ainda estavam com as roupas do jantar, como é que...

— E foi a mesma criada que contou que eles trancavam todas as portas e janelas antes do jantar, e iam dormir logo em seguida, quando os empregados iam embora. — O homem finalizou. As pessoas que estavam por lá trocaram olhares temerosos. — Eu sempre achei que ele fosse esquisito, como eu disse antes. — Ele disse, baixando o tom de voz e olhando para seu copo quase vazio.

— Foram os tempos de soldado que o deixaram esquisito, se querem saber minha opinião. — A dona do bar, secando um dos copos com um pano, disse, por detrás do balcão.

— Eu te disse para ser simpático com ele quando ele veio em nossa loja, não é, Kimura? — Uma mulher sentada um pouco mais longe disse, olhando para seu companheiro que estava sentado com ela.

— Gênio terrível. — O homem que conhecia Tomoji continuou. — Me lembro de uma vez...


Na manhã seguinte, nenhuma alma das redondezas duvidava que Tomoji Taro havia sido o assassino da família que morava na Casa do Brasão da Glicínia. Na cidade vizinha, em uma sala úmida e com uma iluminação precária, onde acontecia o interrogatório, Tomoji afirmava e repetia constantemente que era inocente. Era o único que tinha acesso irrestrito pela casa, e o único que morava próximo o suficiente da casa. Então, quando os guardas estavam próximos a decretar sua participação ativa no homicídio, o laudo da perícia sobre os cadáveres da família chegou, e tudo mudou.

O laudo, por sua vez, afirmava que em nenhum dos corpos havia sido constatado sinais de agressão, esfaqueamento, envenenamento, estrangulamento, sufocamento ou qualquer sinal de violência, tanto externo quanto interno. Não parou por aí quando o laudo afirmou, também, que, fora o fato de que estavam mortos, a família parecia desfrutar de um estado de perfeita saúde. Os legistas, ao final do laudo, observaram (como se estivessem decididos a encontrar alguma coisa errada nos cadáveres) que todos os membros da família tinham uma coisa em comum: uma expressão de puro horror no rosto. Entretanto, segundo a polícia, frustrada, quem é que já havia morrido de pavor?

Como não haviam provas de que a família da Casa do Brasão da Glicínia haviam de fato sido assassinados, não restou escolhas para a polícia se não a de soltar Tomoji. Os mortos, dias seguintes, foram enterrados e sepultados na igreja do povoado próximo e o local da sepultura se tornou alvo de curiosidade geral. Para a surpresa de todos, na manhã seguinte ao enterro, todos viram Tomoji, parecendo abatido pelo tempo em que ficara preso, atravessar as ruas do pequeno povoado e ir em direção a sua casinha subindo parte da montanha, levando consigo uma nuvem de desconfiança de todos.

— Para mim, foi ele quem matou a família, não importa o que a polícia diga. — Comentou, sentado em uma das mesas do Garoto Dourado na noite daquele dia, o mesmo homem que o conhecia.

— E se ele tivesse o mínimo de decência, iria embora daqui quanto antes. — Comentou uma mulher, irritada, no balcão, se servindo de um copo de cerveja.


No entanto, Tomoji não foi embora, continuava a olhar a casa conforme suas instruções anteriormente dadas e, quase sempre, também aparava a grama do jardim da casa. Em não muito tempo, um novo proprietário apareceu, a fim de comprar a casa. Entretanto, quando visitou a residência, disse a Tomoji que o local passava uma sensação desagradável, então desistiu de sua compra. Não muito tempo depois, um ricaço havia comprado a casa e pretendia morar com sua família, dando início a uma nova geração que assumiria o nome da Casa do Brasão da Glicínia.

Apesar disso, sequer morava na casa, tampouco deu destino a ela, diziam que ele a mantinha "por causa dos impostos", embora não soubessem exatamente o significado disso. O ricaço, ainda sim, continuava a pagar Tomoji por seus serviços de jardinagem.


Tomoji, agora, se aproximava de seu septuagésimo primeiro aniversário, muitos anos depois do assassinato da família. Estava velho, sua perna apresentava claros sinais de que não iria suportá-lo por mais nenhum mês sequer, mas, ainda sim, o povoado ainda o via aparando a grama do jardim da casa, apesar de sua enorme dificuldade. Poucas vezes descia ao comércio para comprar o que lhe era necessário, e sempre era tratado com indiferença até mesmo pelos vendedores.

A grama, por outro lado, não era o único problema de Tomoji: a história do assassinato havia sido passado para a geração seguinte, o que ocasionou em crianças e adolescentes se reunindo para atormentar a Casa do Brasão da Glicínia, o qual sempre tiravam Tomoji de sua casinha para afugentá-los.

Por muitas vezes, ele os pegou atirando pedras nas janelas da casa (quando conseguiam pular os muros da residência), atirar dejetos na grama que Tomoji se empenhava para manter aveludada e, cerca de três a quatro vezes, ele os pegou arrombando a fechadura da porta e do portão principal que davam acesso à casa, provavelmente devido a apostas. Achavam graça ver Tomoji, velho, rabugento e manco, persegui-los por um curto período de tempo com sua perna ruim e uma bengala que usava para auxiliá-lo a andar. Ele, por sua vez, achava que, assim como seus pais e avós, os pequenos o consideravam um assassino. Por isso, naquela noite, quando Tomoji ouviu um alto barulho vindo da casa, supôs serem os jovens, indo um pouco além em suas tentativas de castigá-lo.

Primeiramente, sua perna o acordou no meio da noite (supôs ser por volta de uma hora da madrugada, graças a posição da lua que viu pela janela), doía mais que nunca devido à velhice de seus ossos. Ele se levantou com dificuldade de sua cama e dirigiu-se a cozinha, pensando em encher uma compressa de água quente para aliviar a rigidez de seu joelho. Parado, em frente à pia, enchendo sua chaleira em um balde de água, olhou pela janela de sua casa e viu uma forte luz brilhando da Casa do Brasão da Glicínia. Tomoji, na mesma hora, concluiu que os garotos haviam invadido a casa outra vez e acendido a lareira.

Era muito tarde para descer e chamar a polícia, e, mesmo assim, sua perna talvez pudesse impedi-lo e, depois do que lhe acontecera, Tomoji sequer confiava na polícia para ajudá-lo. Na mesma hora, pousou a chaleira na pia e se dirigiu o mais rapidamente que sua perna o permitia de volta ao quarto. Alguns minutos depois, retornou a cozinha completamente vestido e com sua bengala enferrujada o auxiliando a andar. Apanhou uma velha chave enferrujada em uma mesinha redonda de madeira próxima à porta e saiu pela noite.


O portão de entrada da casa não constava sinais de arrombamento. Andando com dificuldade, Tomoji contornou a residência em direção aos fundos até chegar em uma porta oculta pela hera, pegou a chave em um de seus bolsos, enfiou-a na porta e abriu-a cautelosamente para não produzir nenhum ruído.

Entrou em uma cozinha cavernosa, escura e malcuidada. Por muitos anos, Tomoji não havia entrado ali; ainda sim, mesmo no escuro, se lembrou de onde ficava a porta para o corredor e usou uma de suas mãos para tatear pelas paredes até encontrá-la, com as narinas invadidas pelo cheiro de podridão que o local guardava e os ouvidos atentos a qualquer som de passos ou vozes vindas do primeiro andar. Quando encontrou a porta, estava destrancada e, com cuidado, abriu-a e entrou silenciosamente. Quando chegou a sala de estar da casa, atentou seus ouvidos com cuidado e percebeu que o som estava vindo de um dos quartos próximos, no finzinho de um dos corredores.

Ele se precipitou, andando em direção ao quarto, abençoando a poeira grossa que cobria o chão, abafando o ruído produzido por seus passos. Logo viu onde estavam os intrusos, em um quarto com a porta entreaberta de onde saía uma luz vacilante, que projetava uma longa nesga amarelada no chão escuro. Tomoji se aproximava cada vez mais, segurando sua bengala firmemente. A poucos passos da entrada do quarto, conseguiu entrever uma faixa estreita do quarto adiante.

O fogo da lareira estava aceso, o que explicava a luz vacilante que o quarto produzia. Isto, no entanto, o espantou. Parou e escutou com atenção, porque uma voz masculina falava dentro do quarto; parecia tímida e temerosa.

— Há um pouco mais no frasco, se já estiver pronto, senhor...

— Mais tarde. — Respondeu uma segunda voz. Tomoji, no mesmo instante, sentiu um repentino medo e horror daquela voz, algo capaz até mesmo de deixar os cabelos de sua nuca em pé. — Me leve mais para perto do fogo, estou com frio.


Tomoji, então, mesmo relutante, virou a orelha direita para a porta, no intuito de conseguir escutar melhor. No momento seguinte, ouviu o tinido de algo feito de vidro sendo repousado em uma superfície dura, provavelmente uma mesa, em seguida, um ruído prolongado de uma cadeira pesada sendo arrastada. Viu, de relance, um homenzinho corcunda, de costas para a porta, empurrando a cadeira conforme lhe pediram. Usava uma longa capa escura. Em seguida, desapareceu de vista.

— Onde estão meus filhos? — Perguntou a voz que Tomoji se horrorizava ao ouvir.

— N-não sei, s-senhor... — Disse a primeira voz, nervosamente. — Saíram para ver os arredores, e-eu a-acho...

— Vá buscá-los antes de nos recolhermos. — Disse a segunda voz. A voz parecia uma cacofonia de sons entrelaçados, ora grave e sombrio, ora fino e penetrante. — Vou precisar do sangue de meu Mestre durante a noite. Essa viagem me deu uma enorme canseira, mas agora estamos mais perto do menino. — Continuou.

A testa enrugada, Tomoji inclinou o ouvido um pouco mais a frente e escutou aquela mesma voz tímida fazer uma pergunta.

— P-posso perguntar, senhor, p-por quanto tempo vamos ficar aqui?

— Duas semanas. — Respondeu. — Se necessário, talvez mais. O lugar é razoavelmente confortável, e ainda não podemos seguir. Seria uma enorme imprudência agir antes do primeiro semestre da escola terminar... O menino nasceu com a Marca, a Marca do Caçador.

Tomoji meteu um de seus dedos no ouvido e girou-o. Achava que, devido ao acúmulo de cera, havia escutado a palavra "Marca do Caçador", que nunca havia escutado antes.

— A-a Marca do Caçador, meu senhor? — Admirou-se a segunda voz, tímida. — Me p-perdoe, senhor, mas... não compreendo... por que é que temos que esperar até o fim do primeiro semestre?

— Porque será nesse momento que minha conexão com meus filhos ficará mais forte... — Houve uma breve pausa na cacofonia. — Quando acontecer, capture o menino... Capture-o, Kuro.

— E-e-eu? M-m-mas s-senhor...

— Silêncio! — A voz disse em tom alto, ainda como uma cacofonia de sons, fazendo até mesmo as pernas de Tomoji tremerem. — Ele vai estar sozinho... Apenas capture-o. Criarei uma distração e, em meio ao caos, você deverá capturá-lo. Se ele não estiver sozinho, mate.

— S-sim, meu senhor... — Disse a segunda voz, mais fraca que antes, se é que isso era possível. Seguiu-se uma curta pausa e então continuou a falar, como se estivesse se obrigando a fazê-lo antes que perdesse a coragem. — Poderia ser feito sem esse garoto, Takeshi, senhor...

— Sem o garoto? — Perguntou. Nos segundos seguintes, Tomoji teve uma plena certeza de que talvez as lendas pudessem estar corretas: demônios de fato existiam. Quando a voz fez sua pergunta, fez, em seguida, um grunhido de raiva que não poderia ser replicado por nenhum ser humano comum, um grunhido que Tomoji nunca ouvira em toda sua vida, nem mesmo em seus tempos de soldado. — O Mestre Muzan passou séculos procurando pelo Lírio da Aranha Azul e nunca encontrou, idiota. Estou falando do descendente daquele homem, do único que quase cortou a cabeça do Mestre Muzan. — A voz exclamou, muito mais alto que antes, e o som de sua "voz" se tornou ainda mais demoníaco e indecifrável que antes. Tomoji, por sua vez, não era capaz de dar um único passo em qualquer direção.

A segunda voz se calou por um tempo. Durante cerca de um minuto, Tomoji não ouviu nada, exceto o crepitar do fogo produzido pela lareira. Então, a mesma voz arrepiante recomeçou a falar, um pouco mais calma que antes.

— Eu passei muito tempo procurando por onde aquela família se enfiou. Quando descobriram, os pais sumiram com sua cria, mas sinto... Sinto que estamos mais perto. Em pouco tempo, meus filhos me dirão onde ele está escondido.

— O-o senhor acha que ele está aqui? P-por isso viemos para cá? — Kuro perguntou, ainda com voz trêmula.

— Sim. — Respondeu, parecendo achar graça da fala do outro.


No corredor, ainda próximo à porta, com os ouvidos apurados, Tomoji percebeu de repente que a mão que segurava sua bengala se tornara escorregadia de suor. O homem de voz entrelaçada, que parecia com um verdadeiro demônio falando, pretendia comandar dois assassinatos e um sequestro, e havia um ar de normalidade em sua voz. Concluiu, portanto, que era um homem, se é que realmente era um homem, perigoso - um doido, que com certeza havia matado e planejava mais assassinatos. Esse garoto, Takeshi, fosse ele quem fosse, estava correndo perigo.

O olheiro sabia exatamente o que devia fazer naquele momento. Estava na hora de ir à polícia. Ele sairia da casa silenciosamente, do mesmo jeito que entrou, e iria direto ao povoado, até um posto de guarda. Entretanto, a voz recomeçou a falar, e Tomoji continuou onde estava, paralisado, escutando tudo que era capaz de escutar.

— Assim que meu corpo assimilar o sangue do Mestre Muzan, e eu recuperar meus poderes, Takeshi Fujikawa será meu, Kuro. Não haverá mais discussões. Agora... cale-se, acho que estou ouvindo-os voltarem.


E a voz do homem mudou. Começou a emitir ruídos que Tomoji não havia escutado, como se não falasse algo que um ser humano diria, sibilava e bufava sem inspirar. Achou, então, que o homem pudesse estar tendo algum tipo de ataque ou acesso, era sua chance de fugir o mais rápido que pudesse e ir às autoridades. E então, no instante seguinte, pôde ouvir um inconfundível barulho de asas batendo às suas costas no corredor escuro. Virou-se para olhar e, no mesmo segundo, paralisou.

Não precisou imaginar o que estava vindo em sua direção: eram criaturas aladas, talvez morcegos, mas não eram poucos; eram milhares de criaturas vindo em sua direção. O que poderia fazer naquele momento? O único meio de escapar era entrar no quarto onde os dois homens estavam, planejando matar, mas se ele ficasse onde estava, as criaturas aladas certamente o atacariam.

Entretanto, antes que se decidisse, as criaturas aladas (que, a medida que passavam pela nesga de iluminação produzida pela lareira do quarto, Tomoji pôde concluir serem corvos) passaram e então, incrivelmente, milagrosamente, não o atacaram ou fizeram qualquer outra coisa. Eles estavam coordenados o suficiente para não abrir um único centímetro da porta, passavam pela abertura semiaberta. Em seguida, os últimos atravessaram do corredor para o quarto e não havia mais nenhum passando.

Havia suor na testa de Tomoji e agora a mão que segurava a bengala tremia. No quarto, a voz farfalhante continuava a silvar, e ocorreu ao olheiro uma estranha ideia, uma ideia impossível: esse homem podia falar com os corvos.


Tomoji não entendia o que estava acontecendo. Queria mais do que tudo voltar para sua cama com sua bolsa de água quente. O único problema é que suas pernas não pareciam querer se mexer. Enquanto estava parado ali, trêmulo, tentando se controlar e recobrar meus movimentos para ir embora, a voz farfalhante e arrepiante voltou, de repente, a falar em japonês.

— Eles trouxeram notícias interessantes, Kuro.

— V-verdade, senhor? — Respondeu.

— Verdade. Segundo eles, tem um velho humano parado do lado de fora do quarto escutando cada palavra que dizemos.

Tomoji não teve a menor chance de escapar ou se esconder quando ouviu passos e, em seguida, a porta do quarto se escancarou. Um homem de corpo esguio e coberto por uma pele pálida, olhos grandes e arregalados, cabelos longos e desgrenhados, de um tom acinzentado e um nariz pontudo parou diante dele, com uma mescla de medo e susto no rosto.

— Convide-o a entrar, Kuro. Onde seus modos foram parar? — A voz farfalhante e tenebrosa vinha de uma velha poltrona diante da lareira, mas Tomoji não conseguiu ver quem falava.

Kuro fez final para Tomoji entrar. Embora o homem continuasse profundamente abalado, segurou sua bengala com firmeza e, coxeando, cruzou a porta.

O fogo na lareira era a única fonte de luz no quarto; projetava sombras longas e aranhosas nas paredes. Tomoji fixou o olhar na poltrona, mas a parte de trás da cabeça de quem estava sentado sequer podia ser vista. O fato mais estranho que Tomoji notou ao entrar no quarto: não havia um único sinal de corvos.

— Você ouviu tudo, humano? — A voz perguntou.

— A única coisa que eu sei é que nesta noite eu ouvi o suficiente para despertar o interesse da polícia, ah, isso eu ouvi. O senhor já matou uma vez e planeja matar mais! E vou-lhe dizer mais uma coisa... — Acrescentou, numa súbita inspiração. — Minha mulher sabe que estou aqui, e se eu não voltar para casa...

— Você não tem mulher. — Disse a voz farfalhante. — Ninguém sabe que você está aqui. Você não disse a ninguém que vinha. É uma pena, os anos servindo ao Japão foram assustadores, não foram? Mesmo depois de tantos anos, você ainda tem pesadelos com isso. É uma das únicas coisas que ainda tem medo.

— É mesmo? — Retrucou Tomoji com aspereza. — Senhor, é? Ora, não tenho medo de você ou de qualquer outra pessoa. Por que não se vira e me encara como um homem?

— Eu não sou um homem, imbecil. — Respondeu a voz, quase inaudível devido ao crepitar das chamas da lareira. — Eu sou algo muito além de um homem feito de carne e osso. Mas, por que não? Estou com muita fome, e um humano seria útil para a assimilação do sangue do meu Mestre. Vou mostrá-lo que os anos de soldado eram contos de fada... Kuro, vire minha poltrona. — Disse, e o servo deixou escapar um gemido inaudível. — Você me ouviu, Kuro. — E, então, soltou novamente aquele mesmo grunhido de antes, dessa vez mais fraco.

Lentamente, com seu rosto contraído e assustado, como se preferisse fazer qualquer coisa a ter que se aproximar de seu senhor, Kuro se adiantou e começou a girar a cadeira.

E, então, a poltrona ficou de frente para Tomoji e ele pôde ver o que havia nela. Sua bengala caiu no chão com um forte estrépito. Ele abriu a boca e soltou um grito. Gritou tão alto que sequer pôde ouvir o que veio em seguida. No instante seguinte, Tomoji Taro desabou. Havia morrido antes mesmo de bater no chão.

A quinhentos quilômetros de distância dali, o garoto chamado Takeshi Fujikawa acordou assustado.

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